À Prova de Morte

"You look a little touché."
À Prova de Morte, o não-tão-novo filme de Quentin Tarantino, estreou há três anos nos Estados Unidos como parte de Grindhouse, uma brincadeira ousada e arriscada entre ele e Robert Rodriguez (com quem colaborou em Sin City). Grindhouse foi uma homage aos filmes exploitation exibidos nos anos 30 que traziam sessões duplas de filmes trash com temas dos mais absurdos e notadamente exibidos em péssimas condições. O irmão de À Prova de Morte foi o não-tão-bom Planeta Terror, de Rodriguez – que chegou ao Brasil, pasmem, há três anos. A melhor parte de Grindhouse ficou para o final, com muito atraso. E valeu a pena esperar. A versão lançada agora do segmento de Tarantino não possui os oitenta e poucos minutos da versão original, recebendo um belo tratamento (extremamente autoral, como sempre) de um cineasta que compõe planos que exalam sua paixão pelo Cinema.

O filme possui um pouco de tudo que define Tarantino. O trash, a violência, as mulheres icônicas, a vingança, o pop, o vilão marcante e, claro, a genialidade. Na história, Stuntman Mike (Kurt Russell) – um dublê detonado que dirige um carro particularmente sinistro – persegue dois grupos de moças jovens e irresistíveis, dividindo a metragem em duas partes antagônicas (e ainda assim bem semelhantes). Além de construir uma história original enraizada no espírito
trash sem soar necessariamente gratuita e descartável (como o filme de Rodriguez), Tarantino realiza um maravilhoso exercício de estilo que rivaliza com seus melhores filmes.


Existem duas formas de abordar À Prova de Morte, igualmente proveitosas: como puro entretenimento ou como uma belíssima composição cinematográfica. Há camadas e camadas de simbolos, nuances e mensagens esculpidas ao longo da metragem que tornam a sessão tão mais prazerosa. A qualidade que Tarantino traz consigo – de paixão e verdadeiro comprometimento – é rara e especial. Aqui, para início de conversa, ele coloca à mostra três de seus maiores fetiches: o trash, as mulheres e, como bem exibe no primeiro plano da obra: os pés femininos. Sua paixão pelo Cinema também vem a tona, como ao inserir cartazes de filmes nas paredes de um bar – e sua paixão pela música, por sua vez, é refletida no uso do seu próprio jukebox em cenas neste mesmo bar. Em outras palavras, Tarantino fez um filme muito pessoal, ainda que tão distante de sua realidade. Sua paixão é canalizada para a própria audiência, que, portanto, se sente bem conferindo seu filme – de início ao fim.

Como todo filme muito pessoal, este também possui seus defeitos. O cameo do diretor é completamente desnecessário, como também é a presença de seu amigo Eli Roth, cujos diálogos são completamente descartáveis. Os incômodos param por aqui, porém. Os outros defeitos do filme, sejam estes estéticos, técnicos ou narrativos, são propositais. A dedicação do Tarantino ao trash aqui foi tão grande que a película foi fisicamente corrompida, não alterada digitalmente. Temos, portanto, uma imagem um tanto mal tratada, com riscos, cortes, pulos abruptos, linhas, manchas e até partes do “rolo” faltando, como uma cena de lap dance na primeira metade que termina abruptamente antes que algo mais quente seja revelado. Neste aspecto, a primeira metade do filme, que parece se passar em uma época bem retrô pelas roupas e cenários (mas indefinida pela presença de dispositivos eletrônicos de última geração) é mais danificada que a segunda, que por sua vez surge com poucas alterações. Uma das alterações mais notáveis é o corte repentino para o preto e branco (algo comum nos filmes do cineasta) assim que o Stuntman Mike começa a observar o segundo grupo de mulheres, voltando às cores assim que ele sai de cena – uma das muitas belas sacadas de estilo de Tarantino.

Todas as idéias de Tarantino não teriam dado certo sem o devido “apuro” estético, nem que seja para capturar com beleza o feio. Assumindo o posto de direção de fotografia, o cineasta se diverte com belíssimos planos longos (um em especial possui sete minutos e é fantástico ao rodear as amigas enquanto lancham e são discretamente observadas pelo assassino) e sua parceria com Sally Menke rende uma edição excelente que atinge a perfeição no clímax de tirar o fôlego que une o tema de vingança habitual do cineasta com uma perseguição de carro clássica em seu frenesi. A precisão de sua direção aqui é sublime, como também o uso de trilha. O filme todo é uma gradativa expectativa pela cena final, que é deliciosa. Tão gostosa quanto os diálogos abundantes mas nunca excessivos, que refletem de forma fantástica suas personagens e o mundo (abstrato) em que se encontram.

Stuntman Mike surge tão interessante quanto as garotas da história. Encarando um verdadeiro desafio ao ir atrás de próprias dublês na segunda metade, o vilão é encarnado por Kurt Russell com uma autenticidade vibrante. Atinge o excepcional de verdade quando suas vulnerabilidades são reveladas no ato final, ao se tornar o oposto do “vilão imponente”. Mike é  apenas a virtude núcleo de um longa-metragem que é um prazer de se acompanhar. Até nas incoerências narrativas. O destaque fica mesmo pela condução inspirada de Tarantino. Seja na forma como retrata seu vilão de forma tão sutil e com traços tão humanos (o uso colírio é notável), nas suas auto-referências e auto-indulgências ou mesmo quando atinge o etéreo e nos transporta para o verdadeiro paraíso cinematográfico.

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Death Proof (2007)
Direção: 
Quentin Tarantino
Roteiro: 
Quentin Tarantino
Elenco: 
Kurt Russell, Zoe Bell, Rosario Dawson, Vanessa Ferlito, Sydney Tamiia Poitier, Tracie Thoms, Rose McGowan, Jordan Ladd, Mary Elizabeth Winstead, Quentin Tarantino, Marcy Harriell, Eli Roth, Omar Doom, Monica Staggs
(Suspense, 114 minutos)

14 comentários:

Robson Saldanha disse...

O segundo filme de Tarantino que vi, acredita? Antes desse só Bastardos. To muito em falta, mas vou sanar essa dívida. Gostei muito desse filme aí, o final é eletrizante e acho que vale muito a pena, ainda que a primeira parte nem seja lá essas coisas. hehee

Mateus Denardin disse...

Adoro À PROVA DE MORTE, e é realmente um prazer assisti-lo (como o é qualquer filme do Tarantino). Mas tenho de dizer que, pela primeira vez em toda a cinematografia do diretor, os diálogos chegaram a me incomodar em alguns momentos, não parecendo exibir qualquer relevância para o filme a não ser gastar tempo. Mesmo assim, isso é completamente compensado pelo conjunto absolutamente coeso que esse fantástico cineasta entrega. (4/5 ou 7/10)

Unknown disse...

Tarantino é sempre bom. Mesmo quando não tem nada a dizer.

Cara, tu mudou de blog então?

Abs!

Wally disse...

Robson: Poxa, apesar de amar "Bastardos Inglórios", você PRECISA descobrir ao menos "Pulp Fiction" e a saga "Kill Bill" - clássicos. Este novo dele eu gostei muito, mas não está no top 5.

Mateus: Eu entendo isso, em vezes soa mesmo como se Tarantino tivesse excedido, mas pessoalmente gosto desta qualidade nele, então não reclamo.

Otavio: Pois é, é puro estilo e fetiche - nada mais. =) E sim, o velho foi desativado e eu não quis pagar a conta, rs.

chuck large disse...

assisti o filme no cinema. fiquei extasiado, muito divertido e achei o máximo essa homenagem aos filmes 'trash'. Muuuuito massa mesmo!
Abs. =)

Cristiano Contreiras disse...

Todo mundo comenta, eu ainda não conferi! mas, seu texto é detalhado e gostei do foco mais "técnico". abs

Unknown disse...

Beleza! Já coloquei o link no Hollywoodiano! Abs!

Wally disse...

Alan: Exatamente isso: exatasiado. Delirei com o filme.

Cristiano: Você vai adorar, tem duas musas suas de "Rent". ;)

Otavio: Muito obrigado!

Kamila disse...

Perdi a chance de conferir este filme e me arrependo amargamente disso. Que bom lhe ver de casa nova! :)

renatocinema disse...

Tenho que admitir esse filme foi muito melhor do que eu esperava. Me agradou mesmo. Além de "diferente" achei show de bola a trilha sonora. Tarantino é meu ídolo. Abs

Mayara Bastos disse...

Confesso logo que não gosto de "Planeta Terror" e achei errado dividirem os filmes em datas de lançamento diferentes. E parece que este segmento de "Grindhouse" do Tarantino é melhor que o do Rodriguez. À conferir!

Beijos! ;)

Wally disse...

Kamila: Corre atrás! =D E obrigado!

Renato: Eu já esperava algo nesta escala mesmo, adoro Tarantino - trilha sonora impecável.

Mayara: Acho "Planeta Terror" apenas legal. E quando você ver "À Prova de Morte" verá que a divisão foi feliz, pois valorizou o belo trabalho de Tarantino.

AnnaStesia disse...

Gostei, mas não adorei. Tem seus grandes momentos e grandes sacadas. Sendo um Tarantino, não poderia ser diferente.

Anônimo disse...

Acho esse filme sensacional. Parece que até pra "filme ruim" Tarantino consegue ser bom sabe? rs Os diálogos são bem trabalhados, dando mais contorno ao perfil dos personagens e finalizando eles seja de uma forma tao ironica (como de Arlene dançando super sexy, e depois uma lamina dividindo a garota em dois) como de uma mais vingadora.

Abs!

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