Persona non grata


“Ter de transformar em perfeição é arte. Na arte, o homem goza a si próprio como perfeição.”
– F. Nietzsche
 

Existencialista até o última unha encravada, Cisne Negro é uma jornada emocional (e bastante literal) até nossos mais perturbados e lúgubres sonhos. Revestido de referências cinematográficas, literárias e, claro, psicológicas, o quinto longa-metragem de Darren Aronofsky não hesita, esconde ou maqueia demais. Dos primeiros minutos de projeção, por meio da fotografia granulada e dos movimentos sempre muito íntimos, já captamos as verdadeiras intenções do cineasta – como também a própria essência da história que quer contar. Apesar de primar pela subjetividade quanto ao ponto de vista do objeto de estudo – a bailarina Nina Sayers – Aronofsky não quer se esconder atrás de simbolismos aleatórios impostos na tela. Seu jogo de reflexos, ilusões e metáforas está sempre muito explícito; por outro lado, mantém a veia subjetiva no relacionar de Nina com a realidade ambígua que a cerca, por meio da sutileza tornando a persona de Nina muito mais adepta de quem a assiste. Esse oscilamento perigoso do literal com o subjetivo poderia ter saído pela culatra, mas na verdade faz o filme funcionar gloriosamente tanto como exercício cinematográfico quanto como imersão existencial. 

A inspiração da história de Cisne Negro advém de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, mas seria tolice colocar a peça de balé como única referência. Aronofsky e os roteiristas Heyman, Heinz e McLaughlin vão de Kafka a Dostoiévski, sempre primando pelo ardor psicológico e o tom opressor. É no poema O Duplo que Aronofsky confessa ter se baseado, mas é inegável ver um pouco de A Metamorfose na trajetória de Nina Sayers. Somos introduzidos à bailarina como uma jovem inocente e ingênua, de voz infantil e cujos trejeitos revelam todo um relacionamento de repressão com relação a sua mãe, Erica. A partir do momento que vence o papel principal da peça de Tchaikovsky, Nina é exposta de maneira irreversível à pura ambição de arte; de perfeição e, logo, puro êxtase. Sua técnica perfeita como bailarina é logo desafiada quando precisa incorporar, além do cisne branco, o papel de cisne negro, que requer uma entrega muito mais emocional e espiritual. Tal ambição leva Nina à uma imersão impressionante, escancarando por sua vez uma esquizofrenia velada. 

Ainda que o roteiro seja ótimo (com um dos escritores já tendo trabalhado com Aronofsky em O Lutador), construindo a personagem principal de forma fascinante e pontuando seus relacionamentos e despertares com forte cunho psicológico, é na direção vertiginosa de Aronofsky que o filme ganha todo seu poder, seu tour de force. O longa-metragem é dirigido de tal forma que a estética de sobrepõe ao roteiro enquanto experiência puramente sensorial. A qualidade do texto é irrepreensível, mas o que faz da jornada de Nina cinematografia tão magistral é aquilo que vemos orquestrados em celulóide. É a estrutura concebida não por atos, eventos sequenciais ou mera ordem cronológica, mas por uma forte instigação emocional, concebendo uma narrativa totalmente amparada na incosciência de Nina. Assim, seguimos o desenrolar mediante o ponto de vista da mesma. O que por sua vez faz o filme oscilar entre os já citados patamares explícitos e implícitos, que se convergem a todo momento para materializar os devaneios um tanto conflitantes da personagem que, ao mesmo tempo em que evoluiu, desmorona. Abraçando seu id e, por sua vez, abandonando seu superego. 

E é inevitável mencionar id, ego e superego quando se analisa Cisne Negro, visto que a abordagem do diretor e dos roteiristas é totalmente voltada para a visão existencial e, portanto, psicológica. As próprias cores que foram adotadas (o preto, o branco e o vermelho) espelham esta vontade de esmiúçar a personagem e criar uma obra que, apesar do tom explícito visualmente, depende inteiramente da subjetivade para induzir a audiência para dentro do pesadelo de Nina. Não é por nada que o filme tem início com um sonho da mesma; desde o início estamos imersos em seu incosciente. Testemunhas, por sua vez, do despertar de tal pesadelo, que aos poucos se concretiza até vir a tona em sua plenitude por meio de sequência angustiante. Que, apesar das circunstâncias, é dotada de um realismo impressionante. Cortesia da fotografia de Matthew Libatique, que adota o mesmo estilo visto anteriormente em O Lutador; atingindo o visceral por meio da imagem sempre granulada, quase documentada. Os movimentos de câmera também ajudam muito neste aspecto que, ao colaborarem para a narrativa centrada sob o ponto de vista da Nina, surgem diversamente caminhando por de trás da personagem, como se a estivéssemos seguindo constantemente. 

No epicentro de Cisne Negro está a performance extraordinária de Natalie Portman. A metamorfose de sua personagem deve muito à atuação de Portman, que começa o filme pintando a ingenuidade da personagem por meio de voz e postura e gradativamente abandona tais qualidades ao ver sua sexualidade explorada – que, em primeira análise, pode ter a libertado fisicamente e a introduzido ao alter-ego que começa a abraçar naquele momento. O mais interessante desta jornada da personagem, porém, é como se dá o relacionamento com sua mãe, a qual estebelece vínculos conflitantes com a filha no que diz respeito ao apoio à arte dela e, ao mesmo tempo, a repreensão tendo como base sua resignação diante do próprio sonho de ser bailarina (provavelmente interrompido pelo nascimento da filha). E a performance de Barbara Hershey é igualmente notável. Bem como as de Mila Kunis, Vincent Cassel e uma participação arrepiante de Winona Ryder. 

Como não poderia deixar de ser, como uma obra totalmente voltada para Tchaikovsky, a música de Cisne Negro é magnífica. Composta por Clint Mansell, a trilha sonora distorce muitas das composições originais de O Lago dos Cisnes, ao mesmo tempo em que cria novos maravilhosos arranjos para acompanhar o show – e o filme é em si um espetáculo, surgindo como uma tragédia no sentido mais clássico. Classicismo este revitalizado pela linguagem ousada de Aronofsky. Seus planos são lindos e praticamente todos construídos em cima de reflexos (note que quase toda cena terá um espelho presente), criando ainda sequências revestidas de detalhes que só poderão ser denotados diante de estudo e meticulosa observação (discuto aqui a cena da boate, que esconde inúmeras imagens por entre os jogos de luzes). Intenso em sua experiência arrebatadora e uma imersão das mais assombrosas, despertar da sessão de Cisne Negro é acordar de um pesadelo – e nunca foi tão bom dizer isso de um filme.
CISNE NEGRO | Black Swan (2010) Direção: Darren Aronofsky; Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz, John J. MacLaughlin; Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Barbara Hershey, Vincent Cassel, Winona Ryder [Suspense, 108 min.]

12 comentários:

Kamila disse...

Um texto completo, denso e profundo como este grande filme do Aronofsky! Parabéns! "Cisne Negro" permite todas essas discussões!

Mayara Bastos disse...

Que bom que está de volta e em grande estilo ainda. rsrs.

E gostei de uma parte do seu texto que analiza a forma psicológica. Isso é presente no decorrer do filme. Isso que o torma uma experiência incrível. ;)

Anônimo disse...

De longe o melhor filme de 2010! Uma das obras mais enigmáticas e impactantes que já vi!

http://filme-do-dia.blogspot.com/

Dr Johnny Strangelove disse...

A cada novo debate sobre o filme, cresce mais o fascinio por ele ... mesmo tendo debatido a alguns dias atrás que existe algo ficou a desejar ... mas o debate justo e aberto é o que fazem que esse filme fique ainda mais nas nossas cabeças.

Take care my friend!

Alan Raspante disse...

Assisti o filme antes do lançamento no cinema e fiquei fascinado. Quando finalmente chegou ao cinema, fui conferi-lo e olha, fiquei ainda mais extasiado... nas cenas finais fiquei completamente inquieto com o que estava acontecendo na tela. Aronofsky conseguiu (literalmente) mexer comigo. Sei lá, de certo modo, cheguei a ficar até perturbado e tonto após a sessão. "Cisne Negro" é incrivelmente fantástico. Um filme cheio de camadas e discussões..... Muuuuito bom mesmo!!

Mateus Denardin disse...

Reconheço todos os elementos psicológicos mencionados aqui e em algumas outras críticas que já li, admiro a direção de Aronofsky, a dedicação dos atores a seus papeis, a técnica irrepreensível e um boa quantidade de mensagens e simbolismos presentes no filme. Mas, infelizmente, não foi uma obra que me arrebatou como a muitas pessoas. Tanta complexidade que alguns apontam me parece apenas certo exagero, a se considerar um filme que, você bem apontou, não esconde, mas sim mostra-se bastante óbvio em suas interpretações. Gostei bastante, mas, com certa moderação, também acolho muito da opinião dos que não gostaram. 8/10

Matheus Pannebecker disse...

O melhor filme do ano até agora \o/

BRENNO BEZERRA disse...

Falta-me as palavras para falar desse filme. Uma obra-prima. Só lamento o esnobe que Mila Kunis recebeu do Oscar.

M. disse...

Que legal. Você escreve. Alguém na sala que não é completo boçal! hahahhahahhah (brincadeira)

'Cê já leu Dostoiévski?

Amo o Aronofsky. Ele não erra uma. E amo a Natalie Portman. Me apaixonei por ela com a Matilda, de Leon(The professional) Já viu? É de Luc Besson, com Jean Reno e com (o-homem-mais-sexy-do-mundo) Gary Oldman. rs

Ainda não vi o filme (Black Swan). Tempo, quem me dera ter! Estou esperando sair em DVD para comprar no camelô uma cópia de qualidade. Já saiu? hahahah

(um dia vou conseguir me comunicar sem precisar usar piadinhas nonsense. mas esse dia não é hoje)

:)

Até mais,

M.

Pedro Henrique Gomes disse...

Putz, que embuste esse filme.

Anônimo disse...

Muito bom. Sempre ficarei na espera de algo surpreendente de Aronofsky.
ótimo texto.

Sem falar que esse filme foi bem comentado no meu curso (psicologia) porque ein ?

Abraço

http://thomaslumiere.blogspot.com/

Anônimo disse...

Um filme liricamente perfeito, Natalie Portman maravilhosa, a trilha maravilhosa e a camera de Aronofsky ... UAU!

Postar um comentário