O vazio da desordem
dez
29
Posted by Wally
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"Life is only on Earth. And not for long." |
Dividido em duas partes – uma
para Justine e outra mais focada em sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg) – Melancolia não está interessado no
apocalipse. Seu prólogo – que esbanja câmera-lenta e beleza plástica como o de Anticristo – já é o final da história.
Nós sabemos desde o início que o planeta Melancolia se choca com a Terra, a
engolindo. O que importa para von Trier (e para nós) é a estrada até lá. O que
está em jogo (ou não) com a iminência do fim. Para isso, foca em duas irmãs que
se contrapõem. Justine (que é claramente o alterego do próprio diretor) é uma
deprimida que, já não enxergando finalidade em nada, aguarda o tal planeta com
curiosidade e contundência. Claire, por sua vez casada e com filho, se revela
angustiada e tensa, cedendo aos poucos ao desespero.
Apesar da divisão em duas partes
específicas, o longa-metragem almeja uma gloriosa simetria no retrato destes
dois pólos, com a distinção de sentimentos se complementando à mesma medida que
se contrastam. Afinal, esta é a beleza do retrato pungente de von Trier do
homem frente ao final. Sua obra poderia facilmente ter se centrado em Justine e
seguido com certo cinismo um fim que seria nada mais que uma sóbria despedida.
Menos para tragédia, mais para piedade. É a visão niilista de Justine, pelo
menos – e um dos sentimentos por trás deste apocalipse tão pessoal. A
introspecção do roteiro de von Trier, porém, não se limita a abraçar apenas o
lado desesperançoso da humanidade. Está impresso em Claire o caos interno que
nos é provocado com a simples menção da palavra “morte”. E estar de frente para
a morte de tudo transforma Claire, mãe terna e meticulosa, em uma mulher
desconcertada.
Antes do prenúncio da tragédia e
das transformações sofridas pelos personagens a partir de tal constatação,
seguimos um conflituoso casamento que traz uma assombrada noiva, Justine, em
seu epicentro. Em meio à formosura e sofisticação da festa planejada pela irmã
Claire, vemos uma moça anti-social, desconfortável e vulnerável no seu
relacionar com pessoas que claramente não a entendem – e não fazem questão de
tentar compreender. “Ela está doente” – sua irmã defende. Que tipo de doença é
essa, eles devem perguntar. Justine se isola então constantemente, comete atos
instintivos e se entrega à auto-destruição antes mesmo da possibilidade de uma
lua de mel. Ela se vê, durante a festa, constantemente intrigada por uma grande
estrela no céu. O Melancolia. O casamento prenuncia o apocalipse – o que por
sua vez deve ter algum valor simbólico para von Trier.
Findado o casamento, inicia-se o segundo
ato, no qual Melancolia se torna um
vigoroso ensaio sobre o fim. Von Trier deixa sua câmera sempre grudada nos
atores e acompanha as reações destes com uma destreza admirável. A partir daí,
nos prendemos à esses personagens como se dividíssemos as mesmas impressões e
os mesmos temores. Nos nauseamos quando Justine prova de seu prato preferido e
sente gosto de cinzas da mesma forma que aos poucos nos tornamos cúmplices da
angústia que vai nascendo em Claire. Sabemos que o fim chegará e que não existe
salvação para estas pessoas, mas quando o Melancolia passa raspando pela Terra
e vai embora dividimos o alívio de Claire – e o terror desta ao se dar conta de
que o planeta está voltando. É preciso destacar aqui a formidável atuação de
Gainsbourg, que domina o segundo ato e nos apavora com um retrato visceral.
É na impassível percepção de
Dunst, porém, onde parecemos mais nos instigar. Trata-se de uma atuação
apropriadamente contida que vai pintando nuances poderosas para uma persona das mais interessantes. Persona esta que apenas se enfraquece
quando von Trier se dá ao luxo de se tornar auto-indulgente – refiro aqui à
postura “eu sei das coisas” que Justine revela à irmã em determinado diálogo,
subvertendo a personagem à uma figura superior e sábia, o que claramente destoa
do tom sutil e subjetivo que estava sendo construído até então. Justine conhece o vazio e aquilo que
estará engolindo a Terra e a todos (melancolia) já a devora por dentro dia após
dia. Então quando o fim está à sua espreita, ela o aceita como uma velho amigo.
Von Trier encontra então a oportunidade de
pintar aquilo que para todos é uma fraqueza como força – não é por nada que o
prólogo contenha imagens de Justine dominando os raios como se fosse a Mãe
Natureza e Claire, por sua vez, surja afundando os pés na terra, sendo engolida
por esta em meio ao seu desespero. É um discurso muito pessoal de von Trier e
uma obra extremamente autoral – mas uma
que almeja se sobrepor à mera auto-satisfação de um cineasta que sofre da mesma
“doença” que Justine e utiliza do processo de fazer filmes como um método terapêutico.
Sua epifania é o nosso prazer e elucidação. Melancolia
pode ser pessoal, mas funciona em níveis universais e toca profundamente. É
uma união vibrante de imagem e som para criar um apocalipse operático não pela
destruição, mas pela consolidação do vazio. Afinal de contas, talvez Justine
esteja mesmo certa.
Melancholia (2011)
Direção e roteiro: Lars von Trier
Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Alexander Skarsgard, Charlotte Rampling, John Hurt, Stellan Skarsgard, Brady Corbet
Direção e roteiro: Lars von Trier
Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Alexander Skarsgard, Charlotte Rampling, John Hurt, Stellan Skarsgard, Brady Corbet
9 comentários:
Queria ter feito uma sessão dupla desse filme com "A Árvore da Vida", que podem possuir histórias de fundo distintas, mas um mesmo objetivo de discussão sobre a vida. Quero muito conferir "Melancolia". ;)
Acho que "Melancolia" encontra sua força da alternância de pontos de vista entre Justine e Claire. As duas encaram suas emoções de formas muito diferentes. Com o fim do mundo, esse contato com os sentimentos fica mais exarcebado. Um belo filme, com uso poderoso da trilha sonora e imagens poéticas. Fora que a atuação da Charlotte Gainsbourg está sensacional!!!!
Estou muito, mas muito curioso mesmo para conferir este filme. Porém, ele ainda não deu as caras nos cinemas da minha cidade. Espero que dê o ar de sua graça por aqui :)
Eu definitivamente estou com medo desse filme, depois da imensa decepção que tive com 'Anticristo' ;ss
Também estou curioso, mesmo não sendo o maior fã do Lars Von Trier... quando assistir venho comentar aqui novamente!
Ainda não tive chance de conferir, mas este curioso, mesmo não sendo grande admirador de Von Trier.
Abraço
Lamento ainda não ter conhecido uma obra de Lars Von Trier.
Sempre tive sérios problemas com o Lars Von Trier (o que me parece é que ele quer mais aparecer e causar polêmica do que, de fato, contar uma história), mas "Melancolia" me surpreendeu. Pela primeira vez, vi um Von Trier livre de alegorias e exageros. Uma bela surpresa de 2011 e, sem pensar duas vezes, o melhor filme do diretor.
Texto muito bom, Wally. Decifrou o enigma.
O Falcão Maltês
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